terça-feira, 27 de março de 2012

Palavras-cruzadas


Não é em Paris que você vai descobrir isso. Nem andando de pedalinho num cisne de mentira. E pode até ser - mas provavelmente não será - durante um sexo animal e sujo, os dois bêbados e felizes.

É mais provável que seja domingo e que vocês estejam  jogando palavras-cruzadas.

Em silêncio, ele estuda as peças vermelhas com a seriedade de quem vai depor um presidente ou inaugurar uma hidrelétrica.

Demora em cada letra, se arrepende por nunca ter lido um dicionário inteiro, lembra que morou no Canadá, na Europa. Ricos idiomas de todos os continentes vem à sua memória, mas nenhuma palavra com Q e o Q vale 10.

Pode palavra em francês?

De jeito nenhum - eu sou rígida, gosto de torturar.

Ele demora mais e eu deixo.  Os dois quietos, adversários.

Quero ganhar mas não quero, prefiro ver ele vencedor.

Estou distraída reparando no queixo desse homem e pensando num filho com um queixo assim. Se for menino prefiro que pareça com ele, decido. Estou apaixonada e ele se aproveita pra me enganar.

Finalmente. – ele comemora, enquanto dispõe com orgulho sua jogada nos pequenos quadrados: B, U e M. Bum.

Bum?

Sim, bum.

Mas bum não é palavra.

Você escreveu Ui e Ui valeu.

Ui é uma interjeição. Bum não.

Não?

Não. – falo com uma certeza que nem tenho, mas imprimo: uma juíza.

Chega a minha vez e eu só tenho consoantes.

Faço cara de inteligência, ameaço escrever a palavra mais importante do mundo. Eu sou escritora, oras. Seria bom me exibir pra ele.

Mas a sorte ignora meu plano. Erre, eme, efe, zê, vê, tê. É impossível falar bonito desse jeito, nossa língua é laico e romana e se arrasta vogalmente. Se ainda fosse em alemão seria possível escrever um tratado, mas eu mesma inventei que só vale português.

Esperança! Reparo um U dando sopa na mesa, então escolho meu Tê. Ajeito cuidadosa as duas letras, valorizo e escrevo: TU. 

Ele ri. Zomba da minha incompetência. Tanta petulância pra descartar um monossílabo bobo.

Mas mal sabe ele que o T vale cinco e o U vale sete. Mais: o quadrado que elegi é premiado, tríplice valor da palavra. Faça as contas: em duas letras somei 36 pontos.

(Tu é uma palavra pequena mas que conta muito, viu amor? Tu vale muito. Tu me fez disparar na frente, me fez ser melhor. Com Tu o jogo está ganho.)

Não sei se ele percebeu a poesia do meu agrado, mas sorriu e ficou feliz pela minha pequena conquista.

Tudo bem se você for melhor às vezes, ele disse sem dizer, e me deu uma mordida pequena no ombro, eternizando nossa intimidade.

Não tinha cisne nem arco-íris, mas achei esse dia com uma cara de final de filme de amor e me deu uma vontade danada de ser feliz pra sempre.

E a gente não tava nem perto de Paris, pra falar a verdade até Guarulhos tava longe.




sexta-feira, 23 de março de 2012

mim


A mãe quando queria educar a gente sabia ser má. Eu falava errado, minha irmã copiava e a mãe tinha vergonha, queria que a gente falasse que nem os filhos da Dona Eliane.

Compra um chocolate pra mim comer, eu pedia, Faz um suco pra mim beber, choramingava.

Mim não come, Isabel. Mim não bebe.

E nada de chocolate, de suco, mim não tinha direito a nada disso.

Os filhos da patroa, esses sim, falavam um português de dicionário e a mãe achava bonito. Pra eles, tudo. E se a gente já usava as roupas velhas dos marmanjos, se já comia o que eles deixavam, porque não podia tomar vergonha e falar direito que nem eles?

Dá 5 cruzeiros pra mim comprar um chiclete?

Mim não compra, Isabel.

Depois já na escola eu desaprendi a falar errado. Me dá um chocolate pra eu comer?

A mãe descansaria aliviada se tivesse vivido pra me ouvir ser tão gramática.

Fui eu - e não mim - que passou na faculdade, que emoldurei diploma, que aprendi a pedir certo até em inglês.

Mas ninguém me convence que dizer mim não é mais bonito: mim tem muito mais poesia que eu.

Só não tenho coragem de usar na frente dos outros. Ainda acho que se pedir com mim a mãe vai ouvir de algum lugar e voltar só pra brigar com a gente. E Deus me livre de aborrecer fantasma.

Na época não via, mas hoje percebo como era engraçado ser criança na casa da Dona Eliane: a mãe não dava nada pra mim comer e quem ficava com vontade de tudo era eu. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

Aula de Latim


Eu sei, não posso acreditar em amor eterno. Estamos em 2012, não há mais tempo de esperar ou fôlego pra se correr atrás de ninguém. Casamentos acabam e tudo certo, casa-se de novo, os filhos sobrevivem.
 
Dizem por aí que todas as Bodas de Ouro foram um martirio. Nossos avós, coitados, sofreram a vida toda por se suportarem e agora sim, casando 17 vezes, vamos ser muito mais felizes.

O amor eterno é o papai noel dos adultos. (vai dizer que você não espera por ele todo dezembro?)
Um truque de Hollywood, da Disney, da Globo. 
É o latim dos sentimentos: a gente ouviu falar que existe e é bonito, mas está em desuso, nem vale a pena aprender.
Tão raro - um unicórnio.

Eu sei disso tudo, mas hoje meus pais fazem 39 casados e preciso confessar: eu já vi.

Nao é questão de acreditar. Ele esteve ali na minha frente o tempo todo, acontecendo, respirando, sólido.

Não era coisa de novela nem nunca foi roupa de gala, que se usa só pra mostrar pros outros. Lá em casa, o amor eterno sempre foi possível. (Você sabia que ele acontece toda terça-feira?)

Mas nem por isso deixava de ser romântico, nem por isso virou ordinário. O amor que meus pais me ensinaram sempre falou francês e gostou de poesia.

Eu sei, eu nasci em 1981, mas não tenho culpa se aprendi que isso existe.

Ali, na Praia do Flamengo, no alto de um castelo, era uma vez. E viveram felizes para sempre.

terça-feira, 6 de março de 2012

Alguma Suécia


Para rivalizar com os atuais tempos superexposição, surgiram os defensores do  superresguardo. Uma milícia dos bons modos. Uma espécie de ditadura da sutileza.

De repente ficou feio ter qualquer reação mais efusiva. Quem é cool mesmo nunca se exibe. Fotografe mas não poste, curta mas não comente. Comente, mas não compartilhe.  Tenha todas as redes sociais, mas de preferência não use. 

A coisa ainda se extende ao mundo real.  Quem sai do cinema falando que “adorou!” um filme parece burro. Quem sai falando que achou “de certa forma interessante.” parece um grande entendido.

Sentir entrou em decadência. Caps Lock é falta de educação, exclamação é uma deselegância, elogiar é para os incultos. Um tapinha nas costas, breve e de longe, é sempre mais seguro. Não fique tão animadinho, vista o terno Armani do cinismo. Todo mundo fica mais chique no inverno, não é mesmo? Branco combina com tudo. 

Além disso, gente reservada consegue enganar por mais tempo que é inteligente. Parece que eles estão sempre escondendo alguma coisa brilhante, algo que não é pra você.  Você conta que ganhou na loteria, que vai casar, que vai mudar pra Austrália e o sujeito levanta as sobrancelhas como se estivesse acostumado a tudo, como se tivesse feito isso ontem. E boceja.

Sei não, eu ando enjoada de gente blasé. Cansada de coisa pela metade. Superexposição é bem ridículo, mas acho tão chato quanto gente muito discreta, toda escondida. Eu quero mais é contar que estou feliz, meus escândalos já me ajudaram a ganhar algumas batalhas e quer saber? Chorar em público tem suas vantagens.

Mas eu entendo quando estes resguardados usam sua expressão favorita: "não precisa". Não precisa dizer que ama na frente de todo mundo, não precisa gritar quando passar na prova, não precisa xingar, não precisa buzinar, não precisa senão - veja que terrível: vão acabar te confundindo com um ser humano.

O excesso de sutileza é uma mentira grande demais pro meu gosto. Está todo mundo à beira de explodir então não venha me convencer que aí dentro de você é alguma Suécia.